*Por Isaltino Nascimento
Voltemos um pouco no tempo, ao final do ano de 1881. Joaquim Nabuco, aos 32 anos, cheio de entusiasmo político, inteligente, idealista, perde a reeleição para a Câmara dos Deputados.
Tudo porque fizera de seu assento parlamentar o centro nervoso de uma campanha contra a escravidão, que prometia incendiar o país, mas que acabou atraindo a ira dos escravistas, criando para ele um ambiente desfavorável e desgostoso.
Assim, Joaquim Nabuco optou pelo auto-exílio e estabeleceu-se em Londres, onde escreveu o livro “O abolicionismo”, um clássico brasileiro sobre a escravidão, no qual traçou um retrato impiedoso da sociedade brasileira daquela época.
Os olhares enviezados para Nabuco eram ainda maiores porque seus opositores não compreendiam como um homem de berço, nascido em uma família que dava senadores ao país, criado em um engenho da zona canavieira pernambucana, se colocava contra o que os aristocratas consideravam “o motor do país”, ou seja, o uso da força de trabalho dos escravos.
Mas foi justamente por ter vivenciado na infância a dura realidade dos negros escravos que brotou sua veia abolicionista. Tanto que ainda estudante, Nabuco defendera um negro, acusado de matar o homem que o açoitara.
A causa dos escravos desde então se impôs como um norte, para uma carreira política e intelectual pautada pela denúncia de um país que não podia ser, país impossível, sem futuro e sem presente, que era o país da escravidão.
Nabuco percebia, e nisso era sobremodo lúcido, que a perversidade da escravidão não se exercia apenas sobre o escravo, nem sobre a relação senhor-escravo, nem mesmo sobre o atraso a que condenava a economia brasileira. Exercia-se sobre tudo.
Essa reflexão era tão profunda, ao avaliar os malefícios da escravidão, no livro O Abolicionista, acabou fazendo um prognóstico dos prejuízos que aquela situação causaria ao país no futuro. No livro, ele diz:
“A escravidão impediu o aparecimento regular da família nas camadas fundamentais do país”, entre outras coisas, e “reduziu a procriação humana a um interesse venal dos senhores”. Ela tomou conta de todo o corpo social. Com sua “profunda ação psicológica”, “criou uma atmosfera que nos envolve e abafa a todos”.
Esse sentimento de indignação o fez produzir uma obra escrita de grande magnitude sobre a escravidão no Brasil e criar uma Sociedade com a finalidade de lutar pela abolição.
Na atualidade cabe um questionamento pertinente: Como Joaquim Nabuco avaliaria a situação do negro no Brasil de hoje?
Creio que, como grande visionário, constataria que realmente o nosso passado escravocrata deixou uma herança de mazelas para o povo negro, que apesar dos avanços conquistados ainda é vítima do preconceito. Que impede equidade no acesso à moradia, à escola, à saúde, a oportunidades de emprego.
Certamente, se vivo estivesse, Joaquim Nabuco seria um dos incentivadores da vigília que começamos ontem em Pernambuco para acompanhar audiência pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal em Brasília para avaliar o sistema de cotas da Universidade de Brasília. Que foi questionado pelo Partido Democratas, que em pleno século XXI se opõe a que estudantes negros tenham um mínimo de oportunidade num mundo acadêmico que ainda é inacessível a muitos dos nossos irmãos negros.
Certamente Joaquim Nabuco iria declarar que cada vez mais as universidades deveriam se tornar multiraciais, multiétnicas e descolorizadas. E que a necessidade das cotas raciais toma outro sentido se olharmos para o topo da pirâmide do mundo acadêmico e não apenas para a sua base.
O que nos faz ver um quadro de exclusão tão dramático nos mestrados, doutorados e nos concursos para docentes. Por isso a importância das ações afirmativas para a diminuição dessa desigualdade racial.
Isso nos faz refletir que precisamos de muitos Joaquim Nabuco para reforçar a luta na sociedade brasileira contra a discriminação racial, que ainda segrega, machuca e mantém fossos enormes entre a população negra e parda dos brancos. Porque a abolição com a qual Joaquim Nabuco sonhava veio muito mais tarde do que ele desejaria, vergonhosamente tarde, e desacompanhada da distribuição de terra que preconizava.
E quem perdeu com isso foi o Brasil, que somente a partir do governo Lula viu iniciar um ciclo de reparação de tantas desigualdades, com a criação do primeiro Ministério de Igualdade Racial, com a posse no STF do primeiro ministro negro, com a criação do sistema de cotas, com o trabalho empreendido para redução da miséria, da fome, das mortes violentas que atingem e vitimam em maior proporção nossos irmãos negros.
Celebrar a passagem do aniversário de morte de Joaquim Nabuco, ocorrida em 17 de janeiro de 1910, é um ato de reconhecimento a este brasileiro ilustre, que tantos ensinamentos deixou.
Pela generosidade com que Joaquim Nabuco, ilustre patrono da Assembléia Legislativa de Pernambuco, se lançou à causa dos escravos tornou-se um farol na história brasileira, cuja luz ainda hoje ilumina àqueles que lutam contra as desigualdades.
*Isaltino Nascimento (www.isaltinopt.com.br / twitter/isaltinopt), deputado estadual pelo PT e líder do Governo.
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